Essa é a segunda publicação da série da Interact sobre Compliance, que se baseia na pesquisa realizada para criação da solução em tecnologia Compliance & Gestão de Riscos. Na semana passada, apresentamos os principais acontecimentos que contribuíram para o germinar da área.
Hoje vamos mostrar como ela se constituiu efetivamente, a partir da década de 1960. Esse conteúdo integra ainda o Compliance Handbook da Interact, um material de 130 páginas que contempla o histórico, os fundamentos conceituais, a legislação brasileira, os principais modelos no mundo e como o SA Strategic Adviser atende a essas recomendações.
A formalização da área (1960-1990)
Enquanto área, o Compliance começou a ser concebido a partir da década de 1960. Um dos principais fatores deste desenvolvimento foi a exigência da SEC para a contratação de Compliance Officers, profissionais dedicados à garantia da realização de procedimentos em linha com a legislação e as diretrizes internas. Para a função, há também a variação Chief Compliance Officer, sem tradução para o português. Conforme o organograma da corporação, pode ser denominado também como Diretor de Compliance ou Vice-Presidente de Compliance.
Esse marco deu formalidade ao Compliance, com autonomia similar ao setor de auditoria. Na época, a SEC delegou ao profissional de Compliance a criação de procedimentos internos de controles, a busca pela capacitação de pessoas e o monitoramento da instituição para auxiliar os negócios. O objetivo era atuar como um auxiliar na supervisão das áreas de negócios (ABBI, 2009; BRAGATO, 2017).
Nesse período, o dinheiro sujo começou a preocupar os Estados Unidos, principalmente por dar suporte para o crescimento de máfias, grupos terroristas e narcotraficantes. Como resposta, foi aprovada em 1970 a lei RICO – Racketeer Influenced and Corrupt Organizations Act (Lei de Organizações Influentes e Corruptas, em livre tradução). Como penalidades, inclui até 20 anos de prisão, multas rígidas e confisco de qualquer propriedade, negócio ou dinheiro destes atos (BRIDGES, 2019).
Guerra às drogas
A famigerada guerra às drogas nasceu nessa época. Em 1971, o então presidente Richard Nixon proferiu em uma conferência que as drogas ilegais se tornaram os “inimigos número um” do país. A presença de agências federais de controle de entorpecentes aumentou drasticamente pelo país, com adoção de medidas duras. Mais tarde, estas políticas iriam reverberar nos países-membros da ONU no combate à lavagem de dinheiro (LOBIANCO, 2016).
Contudo, a história não segue uma ordem evolutiva linear. Em 1972, a opinião pública internacional se voltou para o escândalo de espionagem no partido Democrata, antagonista do partido Republicano do presidente Nixon. Cinco homens haviam tentado grampear os telefones do Comitê Nacional Democrata, no complexo Watergate, em Washington, nos Estados Unidos.
A investigação identificou o conhecimento do presidente das operações ilegais e as tentativas em atrapalhar as investigações. Em 1974, após se reeleger presidente dois anos antes, Nixon renunciou ao cargo com as provas contundentes apresentadas do envolvimento dele (BRAGATO, 2017).
Além de demonstrar a fragilidade de controles nos Estados Unidos, o caso Watergate desencadeou outra investigação, que identificou o envio de dinheiro de empresas norte-americanas para campanhas de políticos, tanto no país quanto no exterior (SPALDING, 2011).
O caso mais emblemático foi da empresa de aviões Lockheed Aircraft Corporation. Em 1976, o Comitê de Relações Exteriores do Senado dos Estados Unidos revelou que a empresa havia reservado mais de 3 bilhões de ienes em fundos secretos para vender aviões no Japão. Os valores eram repassados em forma de suborno a altos funcionários do governo japonês.
O intermediário da empresa americana era um ex-criminoso de guerra, vinculado com a máfia Yakuza. O caso desencadeou um escândalo ético gravíssimo no Japão. Seis meses depois, o primeiro-ministro foi preso durante seu mandato. O Ministério Público do Distrito de Tóquio o acusou por suspeita de violar a Lei de Câmbio e Comércio Exterior (TOKUMOTO, 2016).
A caixa-preta foi aberta
A Lockheed revelou ter subornado também funcionários públicos da então Alemanha Ocidental, Arábia Saudita, Holanda e Itália. No total, as propinas passavam dos US$ 22 milhões na época. Os valores eram usados principalmente para vencer concorrentes em licitações de caças militares (SPALDING, 2011).
Durante esse período, uma série de empresas multinacionais norte-americanas caíram em escândalos de corrupção no exterior, como a Exxon, a Northrop, a Gulf Oil e a Mobil Oil. Assim a credibilidade do mercado norte-americano precisava urgentemente ser restaurada após tantos escândalos. Como resposta, foi promulgada em 1977 a lei anticorrupção dos Estados Unidos, o Foreign Corrupt Practices Act (FCPA). Ele possui duas disposições principais: exigir requisitos de transparência contábil nos termos da SEC e determinar penalidades sobre suborno de funcionários estrangeiros.
“As sanções pela violação das disposições contábeis e de manutenção de registros do FCPA são as mesmas que se aplicam à maioria das outras infrações das leis de valores mobiliários. Essas penalidades incluem multas, mas não sanções penais. É permitido que as organizações utilizem a manutenção de um programa de conformidade corporativa como fator atenuante a possíveis multas” (CANDELORO, 2012, p. 245).
O FCPA reforçou o poder do Departamento de Justiça dos Estados Unidos e da SEC de processar pessoas jurídicas de capital aberto, de qualquer nacionalidade, registradas na SEC e que possuam ações nas bolsas de valores. Por conta dos escândalos precedentes de abrangência internacional, o FCPA foi mais tarde a inspiração para a criação de convenções internacionais de combate à corrupção.
Ele também trouxe The 10 Hallmarks of an Effective Compliance Program, base para o modelo da U.S. Sentencing Guidelines que no Compliance Handbook é apresentado no capítulo Modelos e Equivalências.
A lei trouxe como ponto principal a ideia de que o pagamento de propinas a um agente público é algo que cria disparidades na concorrência e viola as leis do mercado. Desse modo, a intenção era manter o sistema saudável, longe de práticas que poderiam prejudicar as economias dos países (PETRELLUZZI & RIZEK JÚNIOR, 2014).
No mesmo ano, a SEC lançou um programa de disclosure, que oferecia anistia para empresas que assumissem pagamentos indevidos a funcionários públicos no exterior. Dentre outras coisas, a iniciativa exigiu o comprometimento em adotar medidas internas de Compliance.
A prática da propina
Com isso mais de 400 companhias, entre elas as 100 maiores do mundo, confessaram ter pago propinas. A partir de então, aumentou a pressão dos Estados Unidos para que os países membros da organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) também adotassem procedimentos similares para coibir o pagamento de propinas em transações comerciais internacionais. O Compliance passou a ganhar peso geopolítico.
Por conta dos escândalos precedentes de abrangência internacional, o FCPA foi mais tarde a inspiração para a criação de convenções internacionais de combate à corrupção. No final dos anos 1980, os Estados Unidos transformaram a lavagem de dinheiro em crime federal, independente do antecedente.
Cerco ao sistema bancário
Dois anos mais tarde, em 1988, a convenção da ONU em Viena, na Áustria, chancelou a adoção de medidas severas contra o tráfico de drogas internacional, incluindo lavagem de dinheiro, assim como foi permitida a quebra de sigilo bancário, por determinação legal ou comissão de investigação. O Brasil aderiu às medidas através do Decreto nº 154, de 1991.
Assim como o combate às drogas, a lavagem de dinheiro também entrou em debate no encontro. No ano seguinte, o G7 criou o Grupo de Ação Financeira Internacional Contra Lavagem de Dinheiro – GAFI (Financial Action Task Force on Money Laundering – FATF), em Paris, na França. O órgão foi inserido no âmbito da OCDE com a finalidade de examinar medidas, desenvolver políticas e promover ações para o combate à lavagem de dinheiro.
Em dezembro de 1988, o Comitê de Supervisão Bancária da Basileia, organização de supervisão bancária internacional, criou a declaração Prevention of Criminal Use of the Banking System for the Purpose of Money-Laundering. O documento trouxe diretrizes ao sistema financeiro internacional para impedir e prevenir a utilização de instituições financeiras nos atos de lavagem de dinheiro, em linha com a Convenção de Viena.
Criado em 1975 pelo Grupo dos Dez (G10), organização internacional que reúne onze economias desenvolvidas e subdesenvolvidas, o Comitê de Supervisão Bancária da Basileira é composto por autoridades de supervisão bancária e bancos centrais de Alemanha, Bélgica, Canadá, Estados Unidos, França, Holanda, Itália, Japão, Luxemburgo, Reino Unido, Suécia e Suíça.
Autor: Vinícius Flôres
Referências
ABBI. ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DOS BANCOS INTERNACIONAIS – Cartilha Função de Compliance, 2009. Disponível em: www.abbi.com.br. Acesso em: 1 fev. 2019.
BRAGATO, Adelita Aparecida. O Compliance no Brasil: A empresa entre a ética e o lucro. Dissertação de mestrado. Programa de Mestrado em Direito da Universidade Nove de Julho. São Paulo, 2017.
BRIDGES, Ken. McClellan’s RICO Act Defeated the Mafia. The Cabin. Conway, Arkansas. 28 Jan 2019. Disponível em: https://www.thecabin.net/news/20190128/mcclellans-rico-act-defeated-mafia
CANDELORO, Ana Paula P. Compliance 360º: riscos, estratégias, conflitos e vaidades no mundo corporativo. São Paulo: Trevisan Editora Universitária, 2012.
LOBIANCO, Tom. Report: Aide says Nixon’s war on drugs targeted blacks, hippies. CNN Politics. Atlanta, Georgia, 2016. Disponível em: https://edition.cnn.com/2016/03/23/politics/john-ehrlichman-richard-nixon-drugwar- blacks-hippie/index.html
PETRELLUZZI, Marco Vinicio; RIZEK JÚNIOR, Rubens Naman. Lei Anticorrupção: Origens, comentários e análises da legislação correlata. São Paulo: Saraiva, 2014.
SPALDING, Andrew Brady. The Irony of International Business Law: U.S. Progressivism, China’s New Laissez Faire, and Their Impact in the Developing World. UCLA Law Review, v. 59, 2011. Disponível em: . Acesso em: 4 fev. 2019.
TOKUMOTO, Eiichiro. The Man Who Pulled the Trigger on a Scandal. Blue Review. 17 out. 2016. Disponível em: https://thebluereview.org/manpulledtrigger- scandal/